Um passo a frente, um passo atrás

Desde o final do ano passado o governo federal começou a colocar em prática uma série de mudanças na gestão de TI que podem representar um grande avanço no posicionamento da Tecnologia dentro da gestão pública. No entanto, essas mudanças trazem em si a descontinuidade do esforço de institucionalizar a adoção de software livre pelos órgãos da administração pública. Se, de um lado, publicam-se estratégias avançadas, que procuram colocar a TI em uma posição estratégica e que incorpora novos conceitos e metodologias, de outro omite-se a importância e a necessidade da adoção e do desenvolvimento de tecnologias livres.

Um passo a frente

A primeira grande mudança foi a criação de uma secretaria exclusiva para TI dentro do Ministério do Planejamento. Os assuntos relacionados a TI, historicamente, sempre estiveram ligados aos assuntos de logística e compras. A Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI), que foi desmembrada para criar a atual STI, atuava há décadas se dividindo entre orientar a TI de toda a Administração Pública Federal (APF) e de desenvolver as regras, legislações e instrumentos para compras de governo. Foi lá que nasceu a lei 8.666 e, anos depois, o pregão eletrônico.

Este acúmulo de funções acabou posicionando a TI como mais um item da logística, um bem comum, acessório, que deve ser comprado e contratado da mesma forma que atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, etc. Mesmo quando a secretaria se debruçou para estabelecer melhores práticas de contratações de soluções de TI, colocou no mesmo cesto atividades bastante diferentes, como compras de insumos de informática, contratação de suporte técnico e desenvolvimento de software, sem especializar o que é compra de bens comuns do que é inovação e desenvolvimento.

O resultado é um estado com pouca capacidade de inovação, gestores de TI que são especializados em contratos e licitações, e não em tecnologia, e uma prestação de serviços digitais a população, em geral, ruim e, sempre, fragmentada.

Agora, com uma secretaria dedicada ao tema, espera-se que se inicie um processo de reposicionamento da TI na gestão pública, colocando-a não como acessório, como ferramenta, mas como parte inerente da administração no século XXI e com a possibilidade de requalificar os processos administrativos e o relacionamento do governo com a sociedade.

Outro elemento importante desta mudança foi a publicação da Política de Governança Digital, que substitui os comitês técnico e executivo de governo eletrônico, e que foi complementada pelo lançamento, ontem, da Estratégia de Governança Digital (EGD).

Ela substitui a atual Estratégia Geral de Tecnologia da Informação e Comunicações (EGTIC), utilizada para alinhar as iniciativas de TIC às estratégias do governo federal. Esta mudança é explicitada na justificativa de se passar de uma visão de governo eletrônico para uma visão de governança digital:

“Decorridos 15 anos, o estágio do governo eletrônico no Brasil requer um  eposicionamento das ações alinhado aos avanços da tecnologia e das demandas da sociedade. Assim, o conceito de governo eletrônico, que se refere à ideia de informatizar os serviços prestados pelo governo para a sociedade, é expandido para o de governança digital, segundo o qual o cidadão deixa de ser passivo e se torna partícipe da construção de políticas públicas que já nascem em plataformas digitais, abrangendo não só a internet, mas também outros canais como a TV Digital.” (EGD)

Essa estratégia traz princípios importantes, como Foco nas necessidades da sociedade, Abertura e transparência, Compartilhamento da capacidade de serviço, Participação e controle social, Governo como plataforma, entre outros.

Esses princípios estão, em grande parte, alinhados com experiências internacionais que estão se tornando referência, como o Government Digital Services (GDS), do Reino Unido, e o US Digital Services, dos Estados Unidos (USDS). Ambos publicaram documentos semelhantes que passaram a orientar o desenvolvimento e utilização de tecnologia pelos órgãos e, em seguida, passaram a atuar ativamente no suporte as agências de governo para que colocassem em práticas esses princípios.

Se você não conhece, vale a pena olhar a cartilha desenvolvida pelo USDS para o desenvolvimento de serviços, os princípios de design de projetos do GDS e os padrões de serviços “digitais por padrão”, também do GDS. Ao se comparar essas iniciativas com os objetivos e atividades propostos pela nossa recém lançada EGD, vemos que é um esforço claro para nos alinharmos às melhores experiências internacionais na área. E isso é muito positivo.

Um passos atrás

No entanto, essa série de mudanças vem acompanhada de uma grande lacuna. Além de não citar em nenhum momento a adoção de software livre pelas agências governamentais, o decreto que institui a Politica de Governança Digital revoga os decretos que instituem o comitê de governo eletrônico e seus comitês técnicos, entre eles, o de Implantação de Software Livre (CISL).

Os exemplos britânico e estadunidense, que notadamente serviram como inspiração para para nossa nova estratégia, não cometem esse erro. O padrão de serviços digitais do GDS, por exemplo, diz com todas as letras:

“8. Faça com que todo novo código fonte seja aberto e reutilizável e publique-o sob licenças apropriadas (ou então dê uma explicação convincente de porque isso não pode ser feito para partes específicas do código fonte).” (Digital by default Service Standard – GDS)

Já nos seus princípios de design de projetos, orienta:

“Faça as coisas abertas: Devemos compartilhar o que estamos fazendo sempre que pudermos. Com colegas, com as pessoas que usam o serviço, com o mundo. Compartilhar código, design, ideias, intenções e falhas. Quanto mais gente olhando um serviço melhor ele fica – grandes erros são previstos, melhores alternativas são descobertas e a barra é levantada. Muito do que estamos fazendo só é possível devido a códigos abertos e a generosidade da comunidade de web design. Deveríamos pagar isso de volta.” (Design Principles – GDS)

A cartilha do USDS também não se omite:

“13. Aberto por padrão: Ao colaborar de maneira aberta e publicando dados abertos, simplifica-se o acesso do público aos serviços e informações governamentais, permite-se que qualquer pessoa contribua com facilidade e que o código seja reutilizado por empreendedores, organizações não governamentais, outros órgãos do governo, e pelo público em geral.” (US Digital Services Playbook)

Mais do que a simples omissão do assunto, a instituição da política acontece pouco tempo depois de o Mininstério do Planejamento anunciar que estaria migrando seus serviços de correio eletrônico da plataforma Expresso, desenvolvida pelo Serpro atendendo a um pedido da presidente Dilma após as revelações de espionagem do governo americano, pelo serviço da Microsoft. É gravíssimo, especialmente por se tratar de uma iniciativa do ministério que serve de referência para todos os outros.

Em conversas e entrevistas que fiz com gestores de TI da esplanada para minha pesquisa de mestrado, vejo que há uma tendência em se pensar em softwares como serviço para órgãos governamentais e entes federados. Acho este movimento muitíssimo saudável. Não faz sentido que todos os órgãos gastem recursos e energia no desenvolvimento de soluções que são comuns para todos, como controle de ponto, e, muito menos, em salas-cofre. No entanto, esta política não pode vir desacompanhada de esforços de incentivo ao desenvolvimento de software livre. Os softwares que serão oferecidos como serviço para órgãos do governo e para entes federados devem ser livres.

O Ministério da Cultura, por exemplo, está começando a oferecer o software livre Mapas Culturais para suas áreas finalísticas e para entes federados. Atualmente o software já serve de base para o programa Cultura Viva, para o Cadastro Nacional de Bibliotecas Públicas e para o Sistema Nacional de Museus. Mesmo antes de conseguir atender a demanda que já se apresenta, estados como Tocantins e Mato Grosso já começaram a utilizar a solução de maneira independente e a colaborar com o seu desenvolvimento, além de outros municípios que já a utilizavam, como São Paulo, Sobral, Blumenau e São José dos Campos (dentre outros). Agora, o Ministério da Cultura do Uruguai está internacionalizando o software e começando a utilizar localmente. Tal nível de adesão só é possível por se tratar de um software livre.

E neste ponto vemos mais um movimento perigoso dessas mudanças. Na nova proposta de Instrução Normativa que versa sobre o Software Público Brasileiro, o Planejamento propõe uma nova categoria de software chamada “software de governo”, que seria um software que é compartilhado, sem ônus, entre órgãos governamentais, mas que, no entanto, não são licenciados como software livre.

Essa nova categoria de software legitimaria uma prática que já acontece na administração pública, que é a cessão de software entre órgãos. O que pode ser visto como uma tentativa de aproximação dessas soluções a lógica do software livre, traz, a meu ver, uma série de riscos:

  1. Em primeiro lugar, não se aproveita de toda a possibilidade de colaboração com a sociedade que se poderia ter com um software livre, indo contra, inclusive, o princípio de Participação e Controle Social da Política de Governança Digital. Tampouco se estimula empresas nacionais a se tornarem prestadoras de serviço sobre aquela solução
  2. O órgão que utiliza o software cedido, e que passa a depender dele, se coloca em uma posição frágil e dependente, esperando que a “boa vontade” do cedente nunca termine. (veja cláusulas sétima e oitava do termo de cessão do SEI para o município de São Paulo)

O papel da STI, nesses casos, deveria ser a de orientar firmemente que a prática ideal é a do licenciamento do software sob uma licença livre para permitir o compartilhamento entre os órgãos, auxiliando com suporte técnico e jurídico quando for o caso. Muitas vezes, o caminho da cessão ao invés do licenciamento é motivado apenas por desconhecimento ou insegurança jurídica.

O risco da omissão do software livre na estratégia de governança digital, e da abertura deste caminho nebuloso para o software “de governo”, é aumentar a insegurança jurídica dos órgãos em relação aos sistemas que utilizam e minar as iniciativas de qualificação e inovação no campo do desenvolvimento colaborativo de soluções de governo. Este posicionamento vai contra os próprios princípios da política de governança digital recém publicada e dificulta sua implementação. Espero que os gestores de TI da esplanada ainda revejam essa posição de não colocar o software livre no centro do debate e como orientação formal para os órgãos, sob o risco de termos um retrocesso ainda maior nesta área, apesar de outros esforços legítimos e acertados.

Um passo a frente, um passo atrás